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Pintor daltônico usa a arte para fazer crítica ao racismo: "associei meu daltonismo fisiológico ao daltonismo racial"

Por PB Já em 06/09/2022 às 07:01:22
Nesta terça-feira (30), é celebrado o Dia da Conscientização do Daltonismo. Guto Oca transforma sua capacidade reduzida de enxergar as cores em crítica social. Guto Oca é artista plástico. Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Foto: Danilo Rufino

“ Um artista daltônico. Isso mesmo!”. A fala é de Guto Oca, artista plástico natural de São Paulo, que mora em João Pessoa há 12 anos. O cinza, Guto enxerga rosa e, às vezes, até mesmo verde. Ele usa o daltonismo com que convive como uma metáfora em sua obra para criticar o racismo. “Foi fácil conseguir associar meu daltonismo fisiológico ao meu daltonismo racial”, afirma.

Segundo Guto Oca, o "daltonismo racial" é a alteração da cor da pele negra, a invisibilidade dela ou o embranquecimento através de questões ligadas à miscigenação. "É uma violência simbólica”, afirma o artista. Ele cita o fato de o processo de miscigenação do Brasil ter sido muito violento e envolvido um forte processo de apagamento da cor da pele negra. “Isso implica a ideia que eu vejo no daltonismo, a alteração de uma cor a partir de uma percepção diferenciada”, diz Guto.

Essa minha percepção diferenciada em relação às cores me possibilitou outras investigações em relação à cor . Assim, passei a utilizar em meu trabalho artístico a metáfora da 'cor que não vejo', levando o conceito do 'daltonismo racial' para o meu trabalho.

Essa crítica surge durante a pesquisa de mestrado de Guto, momento em que ele se aproximou da ideia de "daltonismo racial". “Alguns autores e autoras já vem pesquisando esse termo”, destaca. A partir disso, Guto produz o trabalho "Cor que não vejo", uma série de pinturas intitulada "Daltonismo Racial", feita com óleo e acrílica sobre tecido.

Série de pinturas intitulada "Daltonismo Racial", feita com óleo e acrílica sobre tecido pelo artista Guto Oca.

Divulgação / Guto Oca

No caso do meu fisiológico, tem alteração no globo ocular e o daltonismo racial funciona através dessas violências, o apagamento ou embranquecimento da população preta.

"Cor que não vejo"

No projeto "Cor que não vejo", Guto pinta rostos que parecem estar usando “máscaras”. “Para falar de daltonismo racial, eu pintei rostos do jeito que eu vejo mesmo. Por exemplo, um rosto que eu vejo verde, mas para as pessoas é outra cor. Eu comecei a fazer pintura nesse sentido”, explica o artista.

Série de pinturas intitulada "Daltonismo Racial", feita com óleo e acrílica sobre tecido pelo artista Guto Oca.

Divulgação Guto Oca

São rostos que remetem a uma certa tensão física, facial, com palavras que não condizem com a expressão facial.

“Por exemplo, um rosto cansado, tenso ou nervoso de uma pessoa negra e uma palavra dizendo ao contrário como pacífico e tranquilo, mas não, a pessoa não está tranquila. Tentando distorcer essa ideia de que está tudo certo, e não está”, comenta Guto sobre suas pinturas.

Convivência com o daltonismo

Série de pinturas intitulada "Daltonismo Racial", feita com óleo e acrílica sobre tecido pelo artista Guto Oca.

Divulgação / Guto Oca

Desde criança, Guto Oca trocava as cores ao pintar os desenhos da escola, colorindo as árvores de marrom e o céu de lilás.“Mas eu era criança, ficava por isso mesmo, não tinha essa noção de que era daltônico”, relembra.

Para o artista , conviver com o daltonismo implica das pessoas ao seu redor uma adaptação dessa sua percepção diferenciada, “entender que determinadas cores eu vou enxergar diferente. Como o cinza, que eu vejo rosa. Ou trocar as cores da roupa. Já comprei uma calça achando que era marrom, mas era rosa”, explica Guto.

As pessoas estranham um artista daltônico, causa um choque, elas ficam curiosas: 'como você trabalha as cores?'

A decolonialidade na arte de Guto Oca

Série de pinturas intitulada "Daltonismo Racial", feita com óleo e acrílica sobre tecido pelo artista Guto Oca.

Divulgação / Guto Oca

O professor de artes visuais da UFPB, Robson Xavier, possui um estudo sobre a arte de Guto Oca. Para ele, a presença constante de símbolos referentes à identidade afro-brasileira em seu trabalho como os dreadlocks, as máscaras, os pigmentos feitos com terra, os retratos dos seus ancestrais negros, são referências diretas para a construção decolonial em seu trabalho.

Guto Oca utiliza em seu trabalho o daltonismo leve, do qual é portador, como metáfora para o apagamento da cor da pele negra, da exclusão, do preconceito, da invisibilidade, da marginalização do ser artista negro no Brasil.

Para Robson, Guto busca uma “ruptura com as inúmeras tentativas de apagamento da cultura afro-brasileira que advém da concepção colonialista e racista”. Ao mesmo tempo em que entende a arte de Guto Oca como decolonial, Robson afirma que a chamada arte paraibana, a partir do modernismo, é por natureza decolonial.

Mesmo antes da criação do termo ou do pensamento decolonial, a produção artística local, situada fora do centro da produção artística brasileira “eixo Rio-São Paulo”, sempre ficou à margem de todos os processos hegemônicos.

Segundo o professor, a decolonialidade é uma perspectiva emergente oriunda da América Latina, cujo objetivo é repensar as formas de construção do conhecimento para além da perspectiva dominante do conhecimento.

“O pensamento decolonial visa a superação da hegemonia eurocêntrica e norte-americana, partindo do estabelecimento do diálogo e respeito às diversas perspectivas de conhecimentos e cosmovisões ancestrais”Robson Xavier.

*Sob supervisão de Jhonathan Oliveira

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